sábado, 9 de abril de 2022

Casa comigo

Casa comigo

Os dois namorados estavam dentro do carro, à noite, estacionados em frente ao prédio da excelentíssima, discutindo a relação.

 Discutindo mesmo, aos berros, brigando. Em meio a algum “pra mim chega!”, surgiram dois meliantes armados e interromperam aquele bate-boca. 

Transferiram os namorados para o banco de trás e saíram em disparada com eles: sequestro relâmpago.

 Rodaram a cidade durante 50 minutos, fizeram saques em caixas eletrônicos, até que os levaram para um lugar ermo, no meio do mato.

 Duas coronhadas, uma em cada um, rostos sangrando, mas era pouco: despiram os dois, deixando-os apenas com a roupa de baixo, e os amarraram em troncos de árvores.

 Não houve agressão sexual, mas não se pode dizer que foi um passeio no bosque.

 Em plena madrugada, abandonaram o casal imobilizado e seguiram com o carro do rapaz rumo à impunidade garantida.
 
Foram embora. Restou o silêncio.

 Assustados, os dois tentaram, tentaram de novo, e conseguiram, finalmente, se desamarrar.

 Livres, sozinhos, sem saber onde estavam, olharam um para o outro e tiveram um ataque de riso.

 Ele a abraçou fortemente e só conseguiu dizer duas palavras: “Casa comigo”.
 
Aconteceu mesmo. Quem me contou, olho no olho, foi a protagonista feminina da história.

 Eu não conseguiria imaginar pedido de casamento mais romântico.

 Sem vinho, sem luz de velas e sem anel de brilhantes – um pedido movido simplesmente pela emergência da vida, pela busca de uma felicidade genuína, pela supressão da razão em detrimento da emoção verdadeira.
 
Estavam para morrer, os dois. Foram unidos pelo mesmo pensamento desde que foram surpreendidos por dois estranhos armados: acabou.

 Não tem mais por que discutir a relação. Não tem mais relação. Não tem mais manhã seguinte. 

Não tem mais futuro. Acabou. Que perda de tempo, a nossa. Para que brigar? 

Para que se estressar com ciúmes, com queixas, com mágoas? Acabou.
 
E então descobrem que não acabou.

 Desamarram-se, estão nus por fora e por dentro, despidos de qualquer racionalidade, apenas aliviados com o desfecho da aventura e absolutamente tomados pela força do que é essencial na vida. O amor.
 
Casa comigo.
 
Estão casados há 10 anos. Não sei se plenamente felizes. É provável que os motivos dos ciúmes e das queixas e de tudo aquilo que explodiu naquela discussão dentro do carro antes do sequestro tenha se repetido outras vezes.

 O tempo passa e a realidade impõe os seus caprichos.

 Obriga a gente a pensar e manter a sanidade. Maldita sanidade.
 
Mas houve um momento em que eles não pensaram. 

Só sentiram. Sentiram tudo. Sentiram sem amarras.

 Sentiram soltos. Sentiram livres. Pura emoção.

 E a emoção se impôs: casa comigo. Tiveram os piores padrinhos do mundo: a violência e o medo.

 Mas que beijo deve ter sido dado ali em meio ao nada.
 
J. de sta Catarina          05/04/2014            Martha Medeiros

Will Smith

Dois casos delicados da natureza humana: de um lado, o humor mórbido, que faz graça (sem graça nenhuma!) com a dor humana, com a exposição do outro ao ridículo e ao desconforto. Imoral e grave, por ter tido tempo entre o planejamento e a execução, tempo suficiente para que as consequências pudessem ser avaliadas. No “melhor” dos resultados sonhados pelo “humorista”, todos, o marido, o auditório presente e o público virtual ririam da situação constrangedora da vítima. Vejam bem: esse horrível painel é o “melhor” que ele poderia esperar. E a equipe do Oscar seleciona este tipo de profissional para conduzir uma cerimônia deste nível de importância mundial.
De outro lado, temos a impulsividade de Will Smith. Somos obrigados, simultaneamente, a entender a sua dor e a condenar sua atitude, pois todos já sentimos na pele as consequências da perda do autocontrole nas nossas vidas. Sabemos o quanto dói, constrange e humilha. Se um cão late para nós, não devemos latir para ele de volta; não somos cães. Perder o controle é responder às circunstâncias de forma irracional, sem senso ou critério humano, o que fere nossa dignidade e nos expõe.
A questão é que a maioria de nós tem seu “ponto de corte”, ou seja, o limite do que seríamos capazes de suportar, o que varia muito, de pessoa para pessoa. Ampliar esse limite, não deixar que as circunstâncias nos roubem a nós mesmos, tudo isso é resultado de treino diário, de fortalecimento de caráter que devemos construir dia a dia, ao longo da vida. Quando um companheiro humano de jornada comete este erro, deveríamos ter ao mesmo tempo compaixão em relação a ele e mais atenção em relação a nós mesmos. Que o fato seja um fator de amadurecimento para todos, pois, ao invés de criticarmos ou aprovarmos, podemos olhar para a experiência do outro com o olhar de aprendizes.
Logo, como síntese, eu proponho duas perguntas, e espero que as responda silenciosamente, apernas para si próprio, mas que reflita sobre as respostas sob o ponto de vista da dignidade humana: eu já ri da dor alheia? Eu já perdi o controle diante de provocações? Assim, ao invés de julgarmos o outro, crescemos graças ao outro.

Lúcia Helena Galvão

O que vale realmente a pena

Somos frágeis.  Poeira à espera do sopro do vento.  Não temos tempo a perder.  Cada dia que a gente desperdiça é um sol que foi embora sem r...