A fantasia de jogar tudo para o alto
“Me chame de louca e me ganhe para sempre.” Tá, não é bem assim, mas parecido.
Quanto mais cresce e se estabiliza a campanha pelo politicamente correto, mais as pessoas gostam de serem chamadas de loucas.
Mulheres, quase todas. Principalmente as que não são.
Mulheres em geral são responsáveis, centradas, focadas, sabem bem o que querem e o que não querem: uma maneira de dominar a loucura intrínseca que as tenta.
Ainda por cima, mulheres são mães, o que elimina de vez a chance de saírem da casinha (a não ser que a criatura seja louca MESMO).
Todas carregam dentro o gene da insensatez, mas a maioria se controla, precisa amamentar de duas em duas horas, não esquecer de buscar as crianças no colégio, providenciar arroz e feijão à mesa todo dia, como despirocar?
Então elas abafam o desatino (aquele mesmo desatino que quem não se responsabiliza por ninguém extravasa) e ficam ali curtindo a fantasia da demência em silêncio, imaginando: “E se?”.
E se eu fizesse minha mala, dissesse bye-bye para a família e fosse passar um ano meditando na Índia?
E se eu fizesse minha mala, dissesse bye-bye para a família e fosse morar sozinha num quarto-e-sala no centro da cidade?
E se eu fizesse minha mala e aceitasse aquele emprego em São Paulo? E se eu fizesse minha mala e fosse cursar teatro em Nova York? E se eu fizesse minha mala e comprasse um sítio para ter a horta, o pomar e o jardim com que sempre sonhei?
E se eu fizesse minha mala e me alistasse num projeto voluntário para finalmente dar um sentido a minha existência?
Tem sempre uma mala a ser feita no mundo das mulheres pseudoloucas.
Ou mais grave: um homem.
E se eu casar com ele mesmo ciente de que ele tem três ex-mulheres e oito filhos?
E se eu fugir com esse desmiolado que só sabe tocar violão e mais nada?
E se eu me arrepender de largar esse esquizoide que me fez mais feliz do que todos os homens sensatos que conheci?
Loucura e amor são parentes consanguíneos.
Quem olha de soslaio para uma mulher, jura que ela é confiável.
Quase sempre é mesmo. Mas chame-a de louca, mesmo ela não sendo de fato, e terás uma mulher secretamente realizada em seus braços.
Loucas, era tudo o que desejávamos ser, não fôssemos obrigadas a levar a vida tão a sério. Afinal, alguém tem que monitorar essa baderna aí fora.
Martha Medeiros.
Revista O Globo
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