domingo, 3 de outubro de 2021

Amnésia

. .. Amnésia. É o que explica tanta neurose e tanta infelicidade. 

A gente procura esquecer para poder ir adiante, mas que espécie de caminho trilhamos quando não enfrentamos a verdade?

Esquecer é uma estratégia de sobrevivência.

 Somos todos uns esquecidos crônicos. Pra começar, esquecemos de alguns descuidos que sofremos na infância, pois nos educaram para considerar pai e mãe infalíveis.

Dessa forma, nossas dores internas acabam ganhando o apelido de fricotes, só que esses fricotes viram traumas, e esses traumas minam nossa confiança na vida e sustentam os consultórios psiquiátricos, já que esquecer é uma forma de impedir a compreensão absoluta de nós mesmos e alguém precisa nos ajudar a lembrar para nos libertarmos.

Esquecemos os desaforos que tivemos que engolir durante um casamento ou namoro, tudo porque nos ensinaram que o amor deve ser forte o suficiente para aguentar os revezes da convivência, e também por medo da solidão, que tem péssimo cartaz.

Então, para nos enquadramos e nos sentirmos amados e estoicos, esquecemos as mentiras, as traições, os maus tratos, as indiferenças e mantemos algo que ainda parece uma relação, mas que deixou de ser no momento em que enfiamos a cabeça dentro do buraco.

Esquecemos em quem votamos, céticos de que em política nada muda, e em vez de investirmos nossa energia em manifestações de repúdio à corrupção, deixamos pra lá e seguimos em frente conformados com a roubalheira, desmemoriados sobre nossos direitos.

E esquecemos, principalmente, de quem somos. Dos nossos ideais, das nossas vontades, dos nossos sonhos, das nossas crenças, tudo em prol de uma adaptação ao meio, de uma preguiça em desfazer o combinado e buscar uma saída alternativa, de uma covardia que gruda na alma e congela os movimentos. 

Esquecer de nós mesmos é assinar um contrato com a resignação.

Obrigada, Galeano, por nos fazer lembrar: a amnésia é uma opção, não é obrigatória.

Jornal de Sata Catarina 2/10/2011 Martha Medeiros
Tempos de amnésia obrigatória.

A angústia da múltipla escolha


Outro dia um jornalista me perguntou se eu achava que as pessoas andavam muito infelizes em suas vidas amorosas.

 Eu não tenho procuração para responder pelos outros, mas acho que o termo “infeliz” é um pouco dramático. Conheço inúmeros casais que vão muito bem, obrigado.

 O que existe hoje talvez seja uma angústia generalizada em razão da quantidade de portas que a liberação sexual nos ofertou. 

Tem a porta A, que nos leva a um casamento monogâmico, a porta B que nos leva a um caso extraconjugal, a porta C que nos leva a uma vida de solteiro com inúmeros romances, a porta D que nos leva a uma bissexualidade ativa, a porta.

 E que nos leva à paternidade, a porta F que nos leva à separação, a porta G que nos leva a uma solidão escolhida, a porta H que nos leva ao convento, a porta I que nos leva a um clube de swing, a porta J que nos leva a encontros virtuais, e as portas seguem se multiplicando nesse corredor de ofertas.
* * *
Antes a vida tinha menos opções. Você casava para sempre e constituía uma família, já que a reprodução era a razão de ser da sexualidade. 

Ou então não casava e virava tia, uma mulher à margem, que não havia dado sorte, coitada.

 Os homens tinham um pouco mais de liberdade, mas também acabavam aprisionados pela ética vigente: ou se transformavam em reprodutores e provedores, ou não eram boa coisa.

Depois que a pílula anticoncepcional entrou no mercado, sexo deixou de existir apenas para procriação e passou a existir pelo prazer.

 E o prazer é múltiplo, advém de arranjos variados.

 Mesmo ainda pressionados por alguns padrões, hoje temos mais informação e mais autonomia para bater à porta do estilo de vida que acreditamos que nos trará mais satisfação. 

O problema é que esse prazer, que antes era facultativo, virou obrigatório. Ai de você se não tiver “x” parceiros no seu currículo, “n” orgasmos a cada transa, enfim, uma biografia de arrebentar.

 Sua vida erótica tem que ser nada menos que inimitável. Ela passou a ser mais importante do que sua vida emocional, ao menos pra consumo externo.
* * *
Deveriam andar juntos, amor e sexo. Isso restringiria o número de portas e, por consequência, a angústia de ter que escolher apenas uma e renunciar às outras.

 Mas amor e sexo não andam mais juntos e as pessoas ficam perdidas, procurando um amor estável e ao mesmo tempo se abrindo para emoções efêmeras, tentando canalizar seu desejo e ao mesmo tempo sendo excitados por inúmeros estímulos que chegam da tevê, do cinema e das revistas.

Não creio que estejamos mais infelizes no amor, mas um pouco tontos, certamente.

 Muitas possibilidades nos atraem e ao mesmo tempo nos paralisam. O que cada um de nós quer e precisa? Foco e autoconhecimento para transitar nesse freeshop erótico-afetivo sem virar refém do próprio deslumbre. 

Jornal de Santa Catarina
13/09/2009  Martha Medeiros.

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